terça-feira, 10 de março de 2020

Existem “vertentes” no feminismo?



Existem “vertentes” no feminismo?

Radical, liberal, interseccional… entenda de uma vez por todas o que significam essas tais “vertentes feministas”

O fenômeno da opressão das mulheres na sociedade é uma coisa que há muito pouco tempo começou a ser estudada de fato. Mulheres durante muito tempo estiveram excluídas dos bancos da universidade, na verdade há relativamente pouco tempo que conseguiram conquistar o direito de alfabetizar-se e estudar. Foram homens que ocuparam e ocupam a maioria das cadeiras de pesquisadores. E realmente eles não estão nem um pouco interessados em estudar e registrar a história do massacre que eles mesmos executam contra a outra metade da população.

Dessa forma, há pouquíssimo tempo que começamos a produzir e difundir teorias sobre a nossa própria exploração. Só agora que começamos a conseguir pensar nossa própria realidade e produzir um conhecimento sistematizado sobre isso. E esse conhecimento veio num crescente, inserido dentro de um contexto histórico, que foram formando um certo conjunto epistemológico com algumas ramificações que em alguns momentos se complementam, em outros se antagonizam, sempre buscando problematizar a origem da nossa opressão, quais os mecanismos de manutenção e como lidar com isso. E é aí que você escuta falar nas tais “vertentes” feministas que nada mais são que correntes de pensamento dentro do feminismo.

Afinal, o que é “feminismo”?

Almanina Barbour, uma militante negra da Filadélfia, uma vez apontou para mim: “o movimento de mulheres é o primeiro na história que está em guerra sem um inimigo”. Eu estremeci. Era uma crítica clara. Eu tateei em minha mente por uma resposta: certamente o inimigo já deve ter sido definido em algum momento. Do contrário, em que estaríamos atirando nos últimos anos? No ar? Cheguei a somente duas respostas, apesar de eu perceber, ao procurá-las, que era uma pergunta cuidadosamente evitada. A primeira e, de longe, mais frequente resposta é “a sociedade”. A segunda, não frequentemente e sempre furtivamente, é “homens”. Se a “sociedade” é o inimigo, o que isso significaria? Se são mulheres que estão sendo oprimidas, só sobra um outro grupo pra realizar a opressão: os homens. Então por que chamá-los de “sociedade”? Poderia “sociedade” significar as “instituições” que oprimem mulheres? Mas instituições devem ser mantidas, e a mesma questão surge: por quem? A resposta a “quem é o inimigo?” é tão óbvia que a pergunta que realmente importa é “por que isso tem sido evitado?”. O mestre pode tolerar muitas reformas na escravidão, mas nenhuma que ameaçaria seu papel essencial de mestre. As mulheres sempre souberam disso, e, uma vez que “homens” e “sociedade” são na verdade sinônimos, elas têm temido o confronto com ele. Sem esse confronto e uma compreensão detalhada de qual tem sido a estratégia de batalha dele que tem nos mantido completamente dominadas de forma tão bem sucedida, o “movimento de mulheres” é pior do que inútil: ele convida a uma reação masculina e nenhum progresso feminino. (Ti-Grace Atkinson, 1969)
Maria Mies (1998) critica essa tentativa de acrescentar “adjetivos” ao movimento:
Com relação às divisões nos planos ideológico e político, têm surgido tentativas de categorizar e etiquetar as várias tendências no novo movimento feminista. Assim, algumas tendências são chamadas de “feminismo radical”; outras, de “feminismo socialista” ou “feminismo Marxista”; outras, de “feminismo liberal”; às vezes, dependendo da filiação política de quem fala, uma tendência pode ser denunciada como “feminismo burguês”. Do meu ponto de vista, esse etiquetamento não contribuiu para um melhor entendimento do que o feminismo realmente é, por que ele luta, quais são seus princípios básicos, quais são suas análises da sociedade e suas estratégias. Além disso, esse etiquetamento somente é relevante para pessoas que olham para o movimento principalmente de fora e tentam enquadrá-lo em categorias que elas já conhecem. (…) O maior resultado dessa abordagem de etiquetamento, entretanto, não é somente sua pobreza explicatória mas também o fato de que ela tenta encaixar a “questão da mulher” em estruturas de pensamento políticas e teóricas já existentes. Isso significa que essas estruturas, dessa forma, não são criticadas do ponto de vista da libertação das mulheres, mas são consideradas mais ou menos adequadas e apenas carentes do “componente de mulheres”. Se esse “componente” for acrescentado, espera-se, essas teorias se tornariam completas. (tradução livre)
De forma semelhante, Carole Pateman (1988, tradução livre) também pontua que “(…) a classificação de feministas em radicais, liberais e socialistas sugere que o feminismo é sempre secundário, um suplemento a outras doutrinas”.
Buscar a explicação das diferenças sociais entre homens e mulheres não é o que define a teoria e a política feministas. Na verdade, algumas das teorias mais misóginas de, inclusive, “grandes” filósofos da história são exatamente tentativas de explicar por que homens e mulheres ocupam lugares tão diferentes.
Explicar e interpretar o mundo a partir do ponto de vista de uma mulher — ou seja, ler teorias levando em consideração sua vivência material enquanto mulher, para, a partir disso, julgar o quanto a teoria se aplica ou não — também não é feminismo, porque um homem conseguiria fazer esse raciocínio, esse exercício metafísico(ainda que não conseguisse contribuir com ele). Principalmente a partir do desenvolvimento da teoria marxista e das teorias da linguagem, foi ficando cada vez mais óbvio que a subjetividade do autor de um texto sempre está ali, direcionando seu olhar, seu raciocínio, seu pensamento, mesmo quando se rigorosamente segue métodos científicos. Não se precisa ser feminista, portanto, para entender que o ponto de vista de uma mulher e de um homem serão diferentes. Se a mera questão do “ponto de vista” definisse feminismo, teríamos de incluir como “teoria feminista” inclusive teorias fascistas, supremacistas brancas e imperialistas… escritas por mulheres, focadas na questão “das mulheres” de cada um desses grupos.
Uma teoria que não localize histórica e teoricamente como e por que as mulheres, enquanto grupo social, têm estado em situação de dominação por parte dos homens, enquanto grupo social, não é uma teoria feminista. Da mesma forma, uma teoria que aponte esse fato, mas não o coloca como um problema, naturalizando essa situação de desigualdade, também não é teoria feminista.
Teorias que colocam a opressão sexual como fator secundário da opressão feminina, elencando outros fatores como primários, também não são teorias propriamente feministas, porque não compartilham daquela premissa básica. São teorias que podem dialogar em diversos pontos com a teoria feminista, mas que dela necessariamente divergirão quanto à proposta de “soluções”. Maria Mies (1998) comenta como, portanto, não basta, simplesmente, acrescentar a “questão feminina” às teorias:
Todos esses esforços para “acrescentar” a “questão feminina” a teorias ou paradigmas sociais já existentes falham em compreender o verdadeiro impulso histórico da nova rebelião feminista; nomeadamente, seu ataque radical ao patriarcado ou à civilização patriarcal enquanto um sistema, do qual o capitalismo constitui a mais recente e mais universal manifestação. Uma vez que praticamente todas as teorias mencionadas acima permanecem dentro do paradigma da “sociedade civilizada”, o feminismo, que em seu objetivo político necessariamente quer transcender tal modelo de sociedade, não pode simplesmente ser acrescentado ou encaixado em algum nicho esquecido dessas teorias. Muitas de nós que tentaram preencher esses “pontos cegos” finalmente entenderam que nossas questões, nossas análises colocam esse modelo inteiro de sociedade em questão. Pode ser que nós ainda não tenhamos desenvolvido teorias alternativas adequadas, mas nossa crítica, que começou lá no início com essas lacunas, foi mais e mais fundo, até que compreendemos que o “nosso problema”, nomeadamente a relação opressiva exploratória homens-mulheres, é sistematicamente conectado com outros tais “continentes escondidos”, acima de toda “natureza” e de todas as “colônias”.
O que realmente diferencia o feminismo enquanto teoria e enquanto postura política é a identificação da raiz da opressão feminina aliada à luta contra a supremacia masculina. A teoria feminista é a única que parte da premissa de que a opressão primária da mulher é sexual (portanto, todas as mulheres do mundo compartilham, no mínimo, a opressão com base no sexo), e que essa opressão sexual inclusive gera, historicamente, outras opressões. Ponto. Essa premissa aponta, simultaneamente, para a raiz do problema e para sua solução, ao mesmo tempo em que traça os limites do que é e do que não é de fato feminismo.
É possível encontrar diversas formas de expressar essa mesma ideia. Diferentes teóricas definem “feminismo” de diferentes formas, mas o que encontramos de fundamental, de comum a todas é justamente a centralização do fator sexual enquanto definidor da experiência feminina no mundo. Isso não significa que a teoria feminista não dialogue com ou ignore outros fatores de opressão estrutural, como raça e classe; significa, apenas, que o feminismo parte do pressuposto de que, mesmo dentro dos grupos mais vulneráveis, as mulheres constituem a classe mais vulnerável, uma vez que em todos os grupos sociais estão presentes ambos os sexos.
Vamos fazer uma rápida revisão bibliográfica.
Alison Jaggar (1983), por exemplo, diz que é fundamental à luta feminista “revelar a realidade intrincada e sistemática da dominação masculina”, além de que “no final das contas, uma representação adequada do mundo a partir do ponto de vista das mulheres requer a destruição material da dominação masculina”. Denise Thompson (2001) trata de feminismo nos mesmos termos. Segundo a autora, o “ponto de vista feminista” deve ser reconhecido, em primeiro lugar, como a “oposição política e moral à supremacia masculina”; porque, caso contrário, ele perde seu foco unificador central, e “mulher” se torna uma categoria de ocupantes de “lugares sociais”, presas em antagonismos excludentes ao ponto de alguns desses “lugares sociais” serem mais privilegiados que outros (p. 154.) Segundo a autora, “sem a identificação explícita a supremacia masculina como o problema, não há ponto de vista feminista”.
Feminismo é uma crítica completa da dominação masculina onde quer que ela se encontre e como quer que ela se manifeste. É um trabalho que visa a acabar com as imposições masculinas em suas mais variadas formas, e a criar uma comunidade de mulheres se relacionando com mulheres e criando nosso próprio status humano, desoneradas de significados e valores os quais ou incluem as mulheres na raça humana nos termos masculinos ou não incluem de forma alguma. Tudo isso só pode ser feito a partir de um ponto de vista que reconhece a existência da ordem social da supremacia masculina, que permite apenas aos homens o status “humano”, um ponto de vista que envolve uma luta para reinterpretar e reorganizar o mundo de forma que mulheres possam ser reconhecidas como seres humanos também. (tradução livre)
Marylin French (1992) também centraliza a luta contra o patriarcado como característica do feminismo:
A supremacia masculina institucionalizada chama-se patriarcado, tipo de dominação que surgiu provavelmente na Mesopotâmia, no quarto milênio a.C., e, aos poucos, expandiu-se para o resto do mundo. Muitas revoluções desafiaram as elites reinantes desde que surgiu o patriarcado, mas o feminismo foi o primeiro a se a opor a ele por si mesmo.
bell hooks (1984) coloca em outros termos. A autora não fala em “supremacia” ou “dominação” masculina; ela fala em “opressão sexista”:
[definir feminismo enquanto] um movimento para acabar com a opressão sexista direciona nossa atenção a sistemas de dominação e à inter-relação entre as opressões de sexo, raça e classe. Portanto, nos compele a centralizar as experiências e as dificuldades sociais de mulheres que suportam a carga da opressão sexista como forma de entender o status social coletivo de mulheres nos Estados Unidos. Definir o feminismo como um movimento para acabar com a opressão sexista é crucial para o desenvolvimento da teoria porque é um ponto de partida que indica uma direção de exploração e de análise. (tradução livre)
hooks também defende ser necessária uma definição concreta de feminismo, uma vez que o esvaziamento de sentido da palavra — como se cada mulher pudesse ter seu “próprio” feminismo de acordo com o que lhe convém — possibilitou sua cooptação por outras teorias e movimentos que não necessariamente têm comprometimento com a destruição da “opressão sexista”, como os próprios movimentos liberais.
Gerda Lerner (1986) insere um apêndice no seu livro em que ela define diversos termos e expressões. A autora também critica o uso indiscriminado da palavra “feminismo” e também clama por uma definição mais disciplinada; mas aponta que o “feminismo”, em geral, pode ser entendido como (1) um movimento por direitos das mulheres e (2) um movimento pela emancipação das mulheres, enfatizando que a segunda definição entra em conflito com a primeira em diversos pontos, além de a preceder. Qualquer que seja o sentido dado ao “feminismo”, no entanto, é central a ideia de oposição à supremacia masculina e a luta por sua eventual abolição.
É claro que a premissa de que a luta definitiva das mulheres é contra a supremacia masculina não ignora as outras opressões e explorações que permeiam a vida das mulheres. Na verdade, foi só a partir do reconhecimento desse fator comum que nos une a todas — a subordinação ao patriarcado e a necessidade de emancipação — que pudemos começar estudar e a entender as diferentes manifestações da supremacia masculina em diferentes classes, etnias, relações, instituições e culturas, para, com isso, melhor elaborarmos nossas propostas de intervenção. Maria Mies (1998) comenta que o “desencanto” que as feministas do século XX (desde as sufragistas até as liberais dos anos 90) tiveram com a “estatização do feminismo” — em outras palavras, a constatação de que a reivindicação de direitos e a inserção das necessidades específicas de mulheres numa democracia capitalista de um Estado de Bem-Estar Social não era suficiente e de que os direitos conquistados sempre seriam suspensos se assim fosse a necessidade do capital — abriu possibilidades para irmos adiante, porque nos forçou a levar em consideração fatores sociais que antes eram considerados “exteriores” ao feminismo (a autora elenca que esse “desencanto” nos força a 1) ter uma nova compreensão da exploração da mulher sob o patriarcado capitalista, e 2) levantar a discussão a respeito da centralidade do colonialismo na manutenção do sistema patriarcal-capitalista atual.
Tendo essas considerações iniciais em mente, vamos analisar agora, criticamente, as principais chamadas “vertentes” do feminismo.

Feminismo Liberal

(ou liberalismo aplicado à questão feminina)

O liberalismo enquanto teoria política, social e econômica surge por volta dos séculos XV e XVI, mas se fortalece de verdade a partir do século XVII, com a ascensão do iluminismo. A ideia de seus teóricos era fazer uma oposição ideológica às doutrinas monárquicas, de Estado absolutista — o que pressupõe críticas à ausência de direitos, à arbitrariedade inerente a um Estado absolutista, à falta de mobilidade social, ao autoritarismo econômico, político e social, e por aí vai.
Os primeiros liberais, então, defendiam as liberdades do indivíduo — de ter propriedades e de dispor delas como bem quisesse; de acreditar no que quisesse; de votar em quem quisesse; enfim — , o que é plenamente compreensível dado seu momento histórico. De toda forma, o liberalismo é essencialmente individualista. O foco é o indivíduo e suas liberdades pessoais, e não a coletividade.
Alguns liberais chegaram até a falar da condição feminina, como John Stuart Mill, no século XIX, que defendeu o direito da mulher ao divórcio e ao voto. Mas não era a regra. O liberalismo nasceu de um solo burguês e patriarcal, e suas principais expressões ao longo da história apagaram (ou desconsideraram) a participação das mulheres (burguesas ou não).
Tomemos como exemplo o cenário revolucionário francês. Em 1789, foi elaborada e ratificada a “Declaração dos direitos do Homem e do Cidadão”, uma síntese do pensamento burguês-liberal do momento, e — como seu próprio nome carrega — masculinista. Em resposta a esse documento, Olympe de Gouges elabora, dois anos depois, sua “Declaração dos Direitos das Mulher e da Cidadã”, para exigir igualdade jurídica, política e social entre homens e mulheres. (Olympe de Gouges era burguesa, girondina, e foi guilhotinada na Revolução Francesa. Sequer seus “iguais” lhe pouparam)
O liberalismo foi assimilado num primeiro momento como fundamento teórico do direito ao voto feminino, por mulheres que estavam ali começando a articular um feminismo ainda embrionário. Afinal, se essa doutrina defendia serem todos os seres humanos iguais e sujeitos de direitos civis, por que as mulheres deveriam ser excluídas?
E foi no liberalismo que as primeiras defensoras de direitos das mulheres se pautaram para defender seus direitos à participação na esfera pública, o direito ao trabalho e ao controle de suas finanças, e o direito à participação e à representação política de forma geral. Foi a partir desse pensamento que surgiu a primeira onda feminista e um feminismo pautado pela igualdade.
É preciso ressaltar que o entendimento do chamado Feminismo Liberal hoje está envolto numa tremenda confusão semântica. Se você pesquisar no google a expressão “feminismo liberal”, vai encontrar sua utilização referindo-se, por exemplo, ao contexto histórico da primeira “onda” feminista. Também vai encontrar esse termo referindo-se a uma corrente de pensamento mais ou menos organizada, que é chamada de “vertente”. E também vai encontrar a utilização desse termo de forma mais genérica para designar determinadas práticas tidas como feministas mas que de “feminista” não têm nada.
E ainda você vai ter muita confusão com o termo “feminismo liberal” por causa da confusão com o termo “liberal” enquanto sinônimo de liberdade, de algo libertador — o oposto de conservador, melhor dizendo. É comum, então, que se pense que “feminismo liberal” é aquele feminismo que, simplesmente, deseja “liberdades” para as mulheres. Tudo errado.
Então para entender direitinho sobre essa confusão, você lê aqui:
E para conhecer um pouco sobre o pensamento do feminismo liberal aqui:
Resumindo: o que chamamos, hoje, de “feminismo liberal” deve ser compreendido exclusivamente como um momento histórico da luta feminista e do movimento de mulheres. Não é um “tipo” de feminismo, porque, como dissemos, os atos de nomear o problema — o patriarcado — e de apresentar formas de combatê-lo estão no cerne do que chamamos de feminismo, e o liberalismo não propõe enfrentamento, abolição, ou revolução, mas reformas.
Finalizamos com uma citação de bell hooks (1984), que sintetiza o debate:
O impacto positivo das reformas liberais nas vidas das mulheres não deve levar à presunção de que elas erradicam sistemas de dominação. Em lugar algum [nas demandas do feminismo liberal] há ênfase em erradicar a política de dominação; entretanto, [essa política] precisaria ser abolida se o objetivo fosse o cumprimento de qualquer uma de [suas demandas]. A ausência de qualquer ênfase na dominação é consistente com a crença feminista liberal de que as mulheres podem alcançar equidade com homens de suas classes sem desafiar e mudar a base cultural da opressão coletiva. É essa crença que anula a possibilidade de que o radicalismo potencial do feminismo liberal será, em qualquer momento, efetivado. (tradução livre)

A “questão feminina” no socialismo ou Feminismo Marxista/Socialista/Classista

Em primeiro lugar, é necessário pontuar: sempre houve mulheres comunistas e sempre houve movimento de mulheres dentro de partidos comunistas, guerrilhas, instituições, organizações e movimentos revolucionários. As mulheres comunistas são, naturalmente, de longe as mais responsáveis por aprofundar, tanto na teoria/academia quanto na prática, a “questão da mulher” a partir das bases teóricas marxistas, apesar de teóricos homens sempre a terem abordado também, uma vez que a libertação da mulher é pressuposta no comunismo.
As mulheres comunistas e socialistas, no entanto, frequentemente não se colocam como feministas. As primeiras comunistas e socialistas, na verdade, se opunham ao feminismo enquanto movimento, por considerar que se tratava de um movimento de mulheres burguesas para mulheres burguesas, e por acreditarem que a união entre mulheres, independentemente de classe, beneficiaria somente uma classe específica de mulheres (a burguesia) — pensamento esse que fazia total sentido considerando sua época. Kollontai, por exemplo, escreveu extensivamente sobre isso na virada do século, momento em que o feminismo ainda era embrionário e cujas referências teóricas eram mulheres ainda formadas por um pensamento iluminista, portanto burguês e não materialista. Foi somente na prática, nas ruas e nos encontros que as mulheres foram descobrindo que suas “questões” eram mais profundas. De qualquer forma, dentro do próprio marxismo e dos movimentos comunistas existe o debate a respeito da possibilidade — ou não — de existência de um “feminismo marxista”, uma vez que parte dos marxistas acredita ser necessário combater o feminismo (já que ele seria só mais uma manifestação do pensamento liberal burguês), como escreveu a supracitada autora (1907):
Uma mulher pode ter direitos iguais e ser verdadeiramente livre apenas em um mundo onde o trabalho é socializado, harmônico e justo. As feministas não estão dispostas a entender isso e são incapazes de fazê-lo. Elas sentem que quando a igualdade é formalmente aceita pela letra da lei será capaz de conseguir um lugar confortável para elas no velho mundo de opressão, escravidão, servidão, lágrimas e dificuldades. E isso é verdade até certo ponto. Para a maioria das mulheres do proletariado, direitos iguais aos dos homens significa apenas uma parte igual da desigualdade, mas para as “poucas escolhidas”, para as mulheres burguesas, de fato, abre uma porta para novos direitos e privilégios que até agora só foram apreciados por homens de classe burguesa. Mas a cada nova concessão que a mulher burguesa consegue terá outra arma para explorar a mulher proletária e continuar a aumentar a divisão entre as mulheres dos dois campos sociais opostos. Os seus interesses se veriam mais claramente em conflito, as suas aspirações mais evidentemente em contradição.
Décadas antes, August Bebel (1878) já havia descrito como as demandas das mulheres burguesas não alcançavam as mulheres proletárias — defendendo, portanto, que o socialismo era o único caminho realmente libertador para a mulher proletária:
(…) todas as mulheres — independentemente de sua posição na sociedade, como sexo que tem sido oprimido, dominado e injustiçado por homens ao longo do desenvolvimento de nossa cultura — têm o interesse em comum de se livrar dessa situação [de exploração] e de lutar para mudá-la, na medida em que possa ser mudada por meio de mudanças nas leis e nas instituições dentro da estrutura social da ordem política e social existente. Mas a maioria das mulheres também está mais profundamente interessada em algo mais: em transformar a ordem social e política existente de baixo para cima, para abolir ambos a escravidão salariam, que afeta o proletariado feminino mais intensamente, e a escravidão sexual, que é intimamente conectada com nossas condições de propriedade e de emprego.
A porção preponderante de mulheres no movimento de mulheres burguesas não compreende a necessidade de tão radical transformação. Sob a influência de sua posição privilegiada na sociedade, elas veem no movimento de mais longo alcance das mulheres proletárias aspirações perigosas e frequentemente detestáveis com as quais elas devem lutar. O antagonismo de classe que se escancara como um abismo entre a classe capitalista e a classe trabalhadora no movimento social geral, e que continua se tornando cada vez mais evidente e mais dura conforme nossas relações sociais tomam forma, também faz sua aparição dentro do movimento de mulheres e encontra sua expressão apropriada nos objetivos que elas adotam e na forma como elas se comportam. (tradução livre)
Justamente por não se considerarem feministas, mulheres comunistas costumam reivindicar outro tipo de linguagem, como “movimento de mulheres” ou “movimento feminino”, para demonstrar que há organização de mulheres em outros movimentos além do movimento feminista. Também é frequente vermos, em português, textos e discursos a respeito da “questão feminina” ou “questão da mulher” nos textos marxistas (a título de exemplo, A questão da mulher, de Eleanor Marx e Edward Aveiling; The Woman Question, seleção de textos de Marx, Engels, Lenin e Stalin a respeito… da questão da mulher; Lenin on the Women’s Question, de Clara Zetkin; Os Fundamentos Sociais da Questão Feminina, de Kollontai; lembrando que, no original alemão, a expressão utilizada é Frauenfrage, palavra composta pela junção das palavras frauen — mulheres — e frage — questão, problema).
O grande cisma entre teoria feminista e teoria marxista se dá pelo fato de que a teoria marxista considera que a opressão das mulheres coincidiu com a divisão da sociedade em classes e a ascensão do Estado (proposição básica de Engels), enquanto que a teoria feminista entende que a opressão das mulheres — o patriarcado — é anterior à exploração capitalista — a divisão em classes. Sandra Bloodworth (2018) faz um bom resumo do pensamento marxista sobre isso:
Se é difícil imaginar mulheres participando do establishment de um grupo dominante que insistia no controle da sexualidade das mulheres, e nas amarras compulsórias que o acompanham, como a monogamia e a heterossexualidade, não precisa olhar além da própria história conhecida. As mulheres em grupos dominantes ao longo da história têm se beneficiado de e instituído a exploração e a opressão de mulheres. (…) Elas promovem os estereótipos que justificam a discriminação sistemática, até contra elas mesmas dentro de seus círculos, visando manter o poder e o prestígio de sua classe. Então as mulheres podem muito bem ter participado da imposição desse novo regime [de controle da sexualidade feminina]. Ainda que elas vivenciem a opressão, elas também têm acesso a poder e a riqueza por conta de sua posição de classe, a qual depende da manutenção de ambas opressões de classe e gênero daqueles que a classe delas exploram. (tradução livre)
Por partirem de bases diferentes, marxistas e feministas enxergam soluções diferentes: para marxistas, a emancipação feminina será alcançada somente com a revolução socialista/comunista (“A equidade genuína entre os sexos só pode ser efetivada no processo da transformação socialista da sociedade como um todo”, Mao Tse-Tung); para feministas, o fim da sociedade de classes não é garantia do fim da opressão feminina.
Com o desenvolvimento da luta das mulheres — tanto na teoria, quanto na prática — , as mulheres autoproclamadas feministas, na busca por formas de melhorar suas condições de vida e carentes de uma explicação aprofundada das origens de sua opressão, recorreram à teoria — já bem encorpada e desenvolvida, naquele momento histórico dos anos 60 e 70 — marxista e à sua ferramenta de análise, o materialismo histórico-dialético. Muitas das mulheres que passaram a se chamar “feministas marxistas” (ou socialistas, ou classistas — a diferença se dá de acordo com a centralização das análises na exploração de mulheres em uma economia política capitalista, ou não) eram, antes, marxistas; mas acabaram por se tornar insatisfeitas com a posição da “questão feminina” na teoria marxista; ou, ainda, eram feministas insatisfeitas com as explicações teóricas do feminismo sobre a dominação econômica masculina. Rubin Gayle (1975), por exemplo, escreveu:
(…) explicar a utilidade das mulheres ao capitalismo é uma coisa. Argumentar que essa utilidade explica a gênese da opressão das mulheres é outra. É precisamente nesse ponto que a análise do capitalismo deixa de explicar muito sobre as mulheres e a opressão das mulheres.
Também Mary Inman, militante do partido comunista nos Estados Unidos (!), já em 1940, em seu livro In Woman’s Defense, escrevia sobre o que ela acreditava serem falhas na análise marxista. A autora pontuou, por exemplo, que, apesar de suas diferenças de classe, mulheres são exploradas enquanto grupo, e que atitudes supremacistas masculinas permeiam todos os níveis da sociedade — inclusive a classe trabalhadora — , apesar de emanarem da classe dominante.
Antes do surgimento do trabalho de Inman, as discussões da opressão das mulheres na imprensa do Partido raramente, quando muito, iam além de explicações econômicas dos problemas das mulheres. Apesar de reconhecerem que a ideologia da supremacia masculina teve participação na opressão feminina, Comunistas lançavam a tradicional frase Marxista e citavam a exclusão das mulheres da força de trabalho e seu isolamento como trabalhadoras domésticas como as fontes fundamentais de sua subordinação. Mary Inman fez acréscimos a essa visão ao sugerir que, apesar de a opressão das mulheres ter origens econômicas, como a opressão de pessoas negras ela é largamente perpetuada por meio de normas e práticas culturais. (Weigand, 2001, tradução livre)
O desenvolvimento do movimento feminista também tem impacto e influência nas mulheres militantes de movimentos de esquerda. Na publicação “Socialist Feminism: a strategy for the women’s movement” (1972), a organização Chicago Women’s Liberation Union explica sua opção teórica pelo feminismo socialista:
Nós escolhemos nos identificarmos com a herança e o futuro do feminismo e do socialismo e nossa luta pela revolução. Com o feminismo nós aprendemos sobre a completude de nosso potencial como mulheres, a força das mulheres. Nós vimos nosso interesse em comum com outras mulheres e nossa opressão em comum. (…) A partir do feminismo nós entendemos um sistema de opressão institucionalizado baseado na dominação de homens sobre mulheres: o sexismo. Suas contradições são baseadas nas relações sociais hostis postas em vigor por essa dominação. (…) Mas nós compartilhamos uma concepção particular do feminismo que é socialista. É um que foca em como o poder tem sido negado às mulheres por conta de sua posição de classe. (tradução livre)
Ao tentar definir o que é o feminismo socialista, por sua vez, Barbara Ehrenreich (1976) explica que não se trata de uma mera justaposição de teoria feminista e de teoria marxista. Trata-se, na verdade, de “um tipo socialista feminista de feminismo e um tipo socialista feminista de socialismo” —
Há obviamente outras formas de chegar ao mesmo ponto. Eu poderia ter dito simplesmente que, como feministas, temos mais interesse nas mulheres mais oprimidas — mulheres pobres e da classe trabalhadora, mulheres do terceiro mundo, etc., e por esse motivo somos levadas à necessidade de compreender e de confrontar o capitalismo. Eu poderia ter sido que precisamos nos remeter ao sistema de classes simplesmente porque mulheres são membras de classes. Mas estou tentando trazer algo diferente sobre nossa perspectiva como feministas: não há como entender o sexismo em suas manifestações em nossas vidas sem colocá-lo no contexto histórico do capitalismo. (tradução livre)
O feminismo socialista trabalha, então, para unir a teoria feminista (radical) à teoria marxista, considerando que uma pode ajudar a desenvolver a outra. Zillah Eisenstein, na antologia Capitalist Patriarchy and the case for Socialist Feminism (1979), diz explicitamente que o “a síntese do feminismo radical e da análise Marxista é um primeiro passo necessário na formulação de uma teoria política feminista socialista” e que, em seu método, ela usa “a análise de classes Marxista como tese, a análise patriarcal feminista radical como antítese, e de ambas evolui a síntese do feminismo socialista” (tradução livre):
A análise Marxista busca uma explicação histórica das relações de poder existentes em termos de relações econômicas de classe, e o feminismo radical lida com a realidade biológica do poder. O feminismo socialista, por outro lado, analisa poder em termos de suas origens de classe raízes patriarcais. Em tal análise, capitalismo e patriarcado não são nem sistemas autônomos nem idênticos: eles são, em sua forma presente, mutualmente dependentes. (tradução livre)
É interessante como a autora indica todo o desenvolvimento teórico que foi necessário para que ele surgisse. Ela cita Firestone (Dialética do Sexo, 1970); Juliet Mitchell (Woman’s Estate, 1971; Psychoanalysis and Feminism, 1974); Sheila Rowbotham (Women, Resistance, and Revolution, 1972; Woman’s Consciousness, Man’s World, 1973); Ti-Grace Atkinson (Amazon Odyssey, 1974); coletiva Redstockings (Feminist Revolution, 1975); Gayle Rubin (Toward and Anthropology of Women, 1975).
Zillah, então, define algumas bases teóricas do feminismo socialista:
Apesar de existirem mulheres socialistas que são comprometidas em compreender e mudar o sistema do capitalismo, feministas socialistas são comprometidas em entender o sistema de poder derivado do patriarcado capitalista. Eu escolho essa expressão, patriarcado capitalista, para enfatizar a relação dialética mutualmente reforçada entre a estrutura de classes capitalista e a estrutura sexual hierárquica. Entender essa interdependência de capitalismo e patriarcado é essencial para a análise feminista socialista. Apesar de o patriarcado (assim como a supremacia masculina) ter existido antes do capitalismo, e continuar em sociedades pós-capitalistas, é sua relação presente que deve ser entendida se se quer que a estrutura de opressão seja mudada. Nesse sentido, o feminismo socialista vai além da análise singular Marxista e da teoria feminista radical isolada. (tradução livre)
Outra questão teórica desenvolvida por Mary Inman em 1940 e que, vinte anos depois, estaria no centro das discussões das feministas socialistas é a questão do trabalho doméstico, suas funções econômicas sob o capitalismo e sua relação com a opressão das mulheres. Mary, é claro, não foi a primeira a estudar o assunto; já em 1898 Charlotte Perkins Gilman explicava que as mulheres participam do processo de produção de riqueza:
Apesar de não serem produtoras de riqueza, as mulheres atuam nos processos finais de preparação e distribuição. Seu trabalho no ambiente doméstico tem valor econômico genuíno. Porque certa porcentagem de pessoas servirem outras pessoas, para que essas pessoas servidas possam produzir mais, é uma contribuição que não pode ser ignorada. O trabalho de mulheres no lar, certamente, possibilita que homens produzam mais riqueza do que do contrário poderiam; e dessa forma mulheres são fatores econômicos na sociedade. (…) O trabalho que a esposa performa no lar é dado como parte de seu dever funcional, não como trabalho remunerado. A esposa do homem pobre, que trabalho duro em uma pequena casa, fazendo todo o trabalho para a família, ou a esposa do homem rico, que sábia e graciosamente administra uma grande casa e suas funções, cada uma delas tem direito a remuneração justa por seus serviços. (…) A questão é que, qualquer que seja o valor econômico da indústria doméstica de mulheres, elas não o recebem. As mulheres que fazem a maior parte do trabalho ganham a menor quantia, e as mulheres que têm a maior quantia de dinheiro fazem a menor parte do trabalho. O labor de ambas não é dado nem considerado como fator na troca econômica. É considerado responsabilidade delas enquanto mulheres executarem tal trabalho; e seus status econômicos não têm relação nenhuma com seus trabalhos domésticos. (tradução livre)
As teóricas de base marxista (e aqui incluo tanto as feministas radicais quanto as feministas socialistas) criticam veementemente como a teoria marxista tradicional não deu o devido destaque à questão do trabalho doméstico e do trabalho reprodutivo, e demonstram como a desvalorização do trabalho reprodutivo está intrinsecamente conectada à desvalorização da posição social das mulheres. Nos diz Federici (2009):
Parece ser uma lei social que o valor do trabalho é provado e talvez criado pela sua recusa. Este foi certamente o caso do trabalho doméstico que permaneceu invisível e desvalorizado até que surgiu um movimento de mulheres que se recusava a aceitar o trabalho de reprodução como seu destino natural. Foi a revolta das mulheres contra este trabalho nos anos 60 e 70 que revelou a centralidade do trabalho doméstico não-remunerado na economia capitalista, reconfigurando nossa imagem de sociedade como um imenso circuito de plantações domésticas e linhas de montagem onde a produção de trabalhadores é articulada numa base diária e geracional.
As feministas não só estabeleceram que a reprodução da força de trabalho envolve uma gama de atividades muito mais ampla do que o consumo de mercadorias, como também que a comida deve ser cozida, a roupa lavada, os corpos serem acariciados e o sexo feito. Seu reconhecimento da importância da reprodução e do trabalho doméstico das mulheres para a acumulação de capital levou a um repensar das categorias de Marx e a uma nova compreensão da história e dos fundamentos do desenvolvimento capitalista e da luta de classes. (tradução de Feminismo Com Classe)
O movimento italiano de “salários contra o trabalho doméstico”, nos anos 60, talvez seja o principal exemplo de prática feminista socialista que temos. Suas militantes (especialmente Mariarosa Dalla Costa, Silvia Federici e Selma James) se colocam como feministas socialistas, e a análise a respeito da naturalização do trabalho doméstico enquanto função feminina desafia a compreensão marxista tradicional de trabalho e produção:
O trabalho doméstico tinha que ser transformado em um atributo natural, em vez de ser reconhecido como um contrato social, porque, desde o início do esquema do capital para as mulheres, esse trabalho estava destinado a ser dispensado. O capital teve que nos convencer de que é uma atividade natural, inevitável e até mesmo gratificante nos fazer aceitar nosso trabalho não remunerado.
Por sua vez, a condição não remunerada do trabalho doméstico tem sido a arma mais poderosa para reforçar a suposição comum de que o trabalho doméstico não é trabalho, evitando assim que as mulheres lutem contra ele, exceto na disputa privatizada quarto-cozinha que toda a sociedade concorda em ridicularizar, reduzindo ainda mais o protagonista de uma luta. Somos vistas como vadias irritantes, não trabalhadoras em luta. (Federici, 1974, tradução de Feminismo Com Classe)
Mas a crítica das mulheres aos movimentos e instituições de esquerda socialista não se resume à teoria. A prática — sexista — , principalmente dos partidos, gerou em muitas mulheres um incômodo irreversível. Como escreve Cynthia Cockburn (2013), em sua resenha do relançamento do livro Além dos Fragmentos:
Em um artigo de 1988, comentando a edição de 1979 do ADF e outros trabalhos publicados nesse intervalo pelas três autoras, escrevi sobre o feminismo socialista que elas exemplificaram que, com demasiada frequência, é “uma versão culturalmente autopoliciada e editada do feminismo”. É um feminismo que concorda em lidar com a esquerda dentro dos próprios termos de referência da esquerda — termos que excluem “diferença”, política do corpo, sexualidade e sentimentos”. Pareceu-me que as mulheres estavam entrando na sala do socialismo autodesarmadas, deixando voluntariamente as partes mais convincentes de suas críticas feministas à porta. O relançamento mostra que isso não mudou. (Tradução por Feminismo Com Classe)
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Feminismo negro

Enquanto o feminismo moderno/ilustrado se desenvolveu a partir de Simone de Beauvoir e sua afirmação “Não se nasce mulher; torna-se”, os discursos de gênero no feminismo negro partem de uma negação, de uma exclusão, de uma interrogação, que retoma bell hooks de Sojourner Truth em um dos primeiros textos do pensamento feminista negro: “E eu não sou uma mulher?”. (Jabardo, 2012. tradução livre.)
Em termos de produção de conhecimento, pessoas ativistas negras conseguiram falar publicamente e atrair alguma atenção para sua situação (de violência, desumanização e abusos) com a ascensão do movimento abolicionista (e isso é verdade tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil). Especificamente nos Estados Unidos, a discussão sobre a abolição ocorria no mesmo momento em que estavam surgindo os primeiros movimentos sufragistas — e aqui surge a primeira grande cisão entre mulheres brancas e mulheres negras.
Antes do apoio masculino branco ao sufrágio dos homens negros, mulheres brancas ativistas acreditaram que ajudaria em sua causa aliar-se a ativistas políticos negros, mas quando pareceu que homens negros conseguiriam o direito ao voto enquanto elas permaneceriam privadas de direitos, a solidariedade política com as pessoas negras foi esquecida e elas clamaram aos homens brancos para que a solidariedade racial ofuscasse seus planos de apoiar o sufrágio masculino negro. (bell hooks, 1981. tradução livre)
O surgimento do feminismo feito por mulheres negras traz à tona diversas questões que antes eram pressupostas (e, portanto, ignoradas), naturalmente, por teóricas e ativistas brancas. As negras expuseram o quanto a experiência negra (mais tarde, a experiência de mulheres racializadas como um todo) sempre havia sido excluída da construção da categoria “mulher”; o quanto o sujeito “mulher” era descrito na teoria sempre a partir das vidas e das experiências de mulheres brancas. Porque se o feminismo buscava demonstrar que a realidade da opressão das mulheres é universal, ficou evidente que era necessário levar em consideração que existem mulheres diferentes que acumulam em suas vidas experiências diferentes, e isso não as torna menos “mulheres”. Angela Davis (1971) comenta, por exemplo, sobre como o mito da “fragilidade feminina” nunca foi verdadeiro para as mulheres negras:
A dialética da opressão [das mulheres negras] se tornará muito mais complexa. É verdade que ela era uma vítima do mito de que só a mulher, com sua capacidade diminuída para trabalho mental e labor físico, deve fazer o degradante trabalho doméstico. No entanto, os supostos benefícios da ideologia da feminilidade não se estendiam a ela. Ela não era abrigada nem protegida; ela não era mantida à parte da luta desesperada por existência que se desenrolava fora de “casa”. Ela também estava lá nos campos, ao lado do homem, labutando sob o chicote do nascer ao pôr do sol. (tradução livre)
Além disso, a sexualização das mulheres negras é anterior e muito mais intensa do que a sofrida pelas mulheres brancas. Como as mulheres negras, historicamente escravizadas, tinham não só seu trabalho como também sua sexualidade explorados, foi necessário que a branquitude construísse uma iconografia de sexualidade desenfreada da mulher negra, como explica bell hooks (1995):
Para justificar a exploração masculina branca e o estupro das negras durante a escravidão, a cultura branca teve de produzir uma iconografia de corpos de negras que insistia em representá-las como altamente dotadas de sexo, a perfeita encarnação de um erotismo primitivo e desenfreado.
Já Angela Davis (1971) traz uma análise nova: para a autora, o estupro da mulher negra não é somente contra aquela mulher individualmente; é uma forma de desumanizar aquela mulher e de punir a resistência da comunidade como um todo. Segundo Raquel de Andrade Barreto (2005), “O estupro nessa leitura seria visto como um método de controle pelo terror”:
(…) o estupro da mulher negra não era exclusivamente um ataque a ela. Indiretamente, seu alvo era também a comunidade escravizada como um todo. Ao iniciar a guerra sexual contra a mulher, o mestre não só atestaria sua soberania sobre uma figura criticamente importante da comunidade escrava, ele também estaria dando um golpe nos homens negros. O instinto destes de proteger suas parceiras e camaradas (instinto agora desnudo de suas implicações supremacistas masculinas) seria frustrado e violado ao extremo. (tradução livre)
As teóricas do feminismo negro, por fim, não buscam a “inserção” no feminismo, como se fossem “variantes coloridas dos ‘verdadeiros’ problemas”. Pelo contrário: “o feminismo deve transformar-se se quer dirigir-se a nós” (Jabardo, 2012). Pensadoras negras não querem ser objeto de estudo de pensadoras brancas; o pensamento feminista negro constitui-se, principalmente, da construção, por mulheres negras, de sua própria narrativa, a partir de suas experiências vividas.
Você pode ler mais sobre o feminismo negro no texto “O que é o feminismo negro?” maravilhoso de Yasmin Morais.
Também indicamos:








Feminismo Anarquista, anarcofeminismo ou feminismo libertário








Feminismo Radical




O feminismo radical é mais um que sofre com uma grave confusão semântica sendo inclusive discriminado e perseguido sem que haja um entendimento real do que se trata a vertente. Senão, vejamos:
radical. adjetivo de dois gêneros. 1. relativo ou pertencente à raiz ou à origem; original. 2. caracterizado por um sensível afastamento do que é tradicional ou usual; extremado.
O “radical” do feminismo radical tem a ver com a primeira acepção do termo “relativo ou pertencente à raiz ou à origem; original’, não tendo absolutamente nada a ver com a segunda definição que versa sobre ser “extremado”.
O Feminismo Radical procura desvendar e examinar a raiz da opressão global das mulheres pelos homens e as fontes do poder masculino. Por perceber que muita das opressões que mulheres sofrem transcendem questões culturais, geográficas, religiosas, econômicas, e etc, entende-se que a base dessa dominação por parte dos homens se dá justamente por se nascer mulher, por se ter uma biologia de fêmea; somos dominadas por conta de nossos aparelhos reprodutivos e capacidade de reprodução. E assim todas as fêmeas formam uma única classe sexual que é sistematicamente explorada e oprimida, a partir da socialização de gênero que recebem desde o nascimento. Por isso, o Feminismo Radical defende a libertação das mulheres por meio da abolição do gênero e de todas as formas de exploração (inclusive a exploração da força de trabalho, a exploração sexual e a exploração da natureza e da vida).
Considerando nossos apontamentos iniciais sobre os diferentes “feminismos”, cabe aqui dizer que o feminismo radical seria, portanto, não um “tipo” de feminismo, mas a única teoria puramente feminista por ser a única que não secundariza a opressão feminina e que centraliza o patriarcado enquanto estrutura opressiva, além de ter desenvolvido ferramentas de análise e de produção de conhecimento próprias, exclusivamente feministas, a partir da produção de conhecimento de mulheres por mulheres para mulheres e sobre mulheres.








Referências

Atkinson, Ti-Grace. (1969) Radical Feminism.
Barreto, Raquel de Andrade. (2005) Enegrecendo o feminismo ou Feminizando a raça: narrativas de libertação em Angela Davis e Lélia Gonzalez. Dissertação de mestrado. Programa de Pós-Graduação em História Social da Cultura, Departamento de História — PUC-Rio.
Bebel. (1878) The enemy sisters. in: Woman and Socialism.
Bloodworth, Sandra. (2018) The origins of women’s oppression — a defence of Engels and a new departure. Marxist Left Review.
Chicago Women’s Liberation Union. (1972) Socialist Feminism: a strategy for the women’s movement.
Cockburn, Cynthia. (2013) “Beyond the Fragments”: I’m a socialist feminist. Can I be a radical feminist too? Tradução de Feminismo Com Classe.
Davis, Angela. (1971) Refletions on the black woman’s role in the community of slaves. in: James, Joy (ed). (1998) The Angela Y. Davis reader. Blackwell Publishers.
Ehrenreich, Barbara. (1976) What is socialist feminism? In: Working Papers on Socialism & Feminism, by the New American Movement.
Eisenstein, Zillah (ed.). (1979) Capitalist Patriarchy and the case for Socialist Feminism. Monthly Review Press.
Federici, Silvia. (2009) The reproduction of labour-power in the global economy, Marxist theory and the unfinished feminist revolution. Seminário. Tradução de Feminismo Com Classe.
Federici, Silvia. (1974) Wages Against Housework. Power of Women Collective and Falling Wall Press. Tradução de Feminismo Com Classe.
Firestone, Shulamith. (1970) A dialética do sexo.
French, Marylin. (1992) A guerra contra as mulheres. Editora Nova Cultural.
Gayle, Rubin. (1975) The traffic in women: notes on the “political economy” of sex.
hooks, bell. (1981) Ain’t I a Woman. Black women and feminism. South End Press.
hooks, bell. (1984) Feminist Theory — from margin to center. South End Press.
hooks, bell. (1995) Intelectuais Negras. in: Revista Estudos Feministas, n. 2, UFRJ.
Jabardo, Mercedes (org.). (2012) Feminismos negros: una antología. Ed. Traficantes de Sueños.
Jaggar, Alison M. (1983) Feminist Politics and Human Nature, Brighton: Harvester Press.
Kollontai, Alexandra. (1907) Os fundamentos sociais da questão feminina [extratos]. Tradução de Maria Luiza Oliveira.
Lerner, Gerda. (1986) The creation of patriarchy. Oxford University Press.
Mies, Maria. (1998) Patriarchy and Accumulation on a World Scale. Zed Books, 6th impression.
Pateman, Carole. (1988) The sexual contract. Stanford University Press.
Perkins Gilman, Charlotte. (1898) Women and Economics: a study of the economic relation between men and women as a factor in social evolution. Boston: Small, Maynard & Co.
Thompson, Denise. (2001) Radical Feminism Today. Sage Publications.
Weigand, Kate (2001). Red feminism: American Comunism and the making od Women’s Liberation. John Hopkins University Press.

América: Aspectos Gerais

Atividades:  Leia atentamente o texto acima  e responda as questões 1, 2 e 4  da página 103 : (Questões abaixo) As respostas serão digitadas...